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terça-feira, 14 de outubro de 2025

Entre a dor psíquica e a (des)esperança

 



"O suicídio é um ato definitivo para um problema temporário"

[Shneidman]

 

Por: Arlindo Nascimento Rocha 

Começo este artigo com a célebre máxima de Edwin Shneidman, mencionada pela Doutora Karina Okagima Fukumitsu durante o Seminário “Agir, Proteger e Cuidar de Vidas”, organizado pelo Escritório de Políticas Transversais de Direitos e Cuidados, Saúde e Acessibilidade da Prefeitura Municipal de Niterói. O evento, realizado no Teatro Municipal da cidade, reuniu um público expressivo e suscitou profundas reflexões sobre a prevenção do suicídio.

A Dra. Karina Fukumitsu, psicóloga, psicopedagoga e gestalt-terapeuta, exerce funções como consultora em Saúde Existencial. A sua sólida trajetória académica inclui Pós-doutoramento e Doutoramento em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e Mestrado em Psicologia Clínica pela Michigan School of Professional Psychology (MiSPP). Reconhecida como referência em Suicidologia, coordena atualmente a Pós-Graduação em Suicidologia: Prevenção e Posvenção, Processos Autodestrutivos e Luto, na Faculdade Phorte.

Entre os vários apontamentos apresentados na sua palestra, a máxima de Shneidman destacou-se pelo impacto que me causou, conduzindo-me à reflexão e ao desejo de elaborar este texto, ainda que o tema não seja a minha área de especialidade direta. A relevância desta máxima justifica-se pela sua densidade conceitual e pela urgência que a questão suscita.

Para melhor compreendê-la, acredito ser necessário conhecer o seu autor: Edwin Shneidman (1918–2009), foi um psicólogo norte-americano considerado o fundador da Suicidologia, criador do Centro de Prevenção do Suicídio de Los Angeles e da Associação Americana de Suicidologia. Shneidman definiu o suicídio como o resultado de uma dor psíquica intolerável, isto é, um sofrimento mental que se torna insuportável.

Ao mencionar um “problema temporário”, creio que o autor se refere as dificuldades passageiras que, no entanto, para quem as vivencia intensamente, podem parecer insolúveis e definitivas. Nesse contexto, a perceção do tempo e do futuro é obscurecida e a esperança de mudança é anulada, abrindo espaço para que o suicídio seja visto, de forma distorcida e desesperada, como a única saída possível.

Durante a sua exposição, em tom pedagógico e acolhedor, a Dra. Karina sublinhou que o suicídio não deve ser silenciado nem tratado socialmente como tabu. O silêncio, segundo ela, apenas perpetua preconceitos e mitos. O diálogo deve ser contínuo em todos os espaços sociais e não restrito ao Setembro Amarelo, mês de maior mobilização em torno da valorização da vida e da saúde mental.

A sua capacidade de dialogar de forma aberta e empática com os presentes, aliada a uma postura segura e sensível, reforçou de forma exemplar o lema do seminário: “Agir, Proteger e Cuidar de Vidas”, recordando-nos de que a vida, enquanto bem supremo, merece cuidados permanentes. Como afirmou a palestrante, “enquanto há vida, há solução”. Tomo a liberdade de acrescentar: “enquanto há tempo, há solução”, pois é no tempo que se abrem as possibilidades de transformação. O devir, como propôs Heráclito, só acontece porque o tempo não cessa.

Refletindo sobre a máxima de Shneidman, duas expressões merecem ser destacadas: (1) “suicídio”, entendido como ato de pôr termo à própria vida diante de um sofrimento psíquico insuportável; (2) “problema temporário”, que sob uma ótica externa pode ser solucionado, mas que para quem sofre é percebido como prisão inescapável. O paradoxo reside precisamente aí: no limite da dor, perde-se a capacidade de projetar o amanhã.

Apesar da força da máxima, é necessário reconhecer o seu caráter limitador quando tomada de forma isolada. O suicídio é um fenómeno multifatorial, envolvendo aspetos como doenças mentais, exclusão social, bullying, xenofobia, desesperança, doenças crónicas e ausência de propósito. Para o indivíduo em sofrimento, a dor não é percebida como efémera, mas como absoluta, radical e definitiva. Daí a necessidade de uma abordagem sempre empática, integrada e multidisciplinar.

Ainda assim, a máxima pode atuar como um antídoto simbólico: ao recordar que “toda dor é passageira”, evidencia-se que os problemas temporários podem ser superados através da compreensão, do autoconhecimento, da terapia e, em certos casos, do recurso à medicação. Isto reafirma a importância do tempo e do apoio no processo de ressignificação da vida.

A reflexão que desenvolvi até aqui conduziu-me também a outro tema que abordei na minha dissertação de Mestrado na PUC-SP, em 2016: o tédio, na perspetiva do filósofo francês Blaise Pascal. Para ele, nada é tão insuportável ao homem quanto permanecer em repouso absoluto, sem paixões. Nessa condição, o indivíduo depara-se com o vazio existencial, que gera tristeza, mágoa, desespero e o sentimento do nada.

Contudo, o tédio deve ser compreendido como um estado temporário, e não como um destino inevitável. A tradição clássica já advertia, como lembra o filósofo estóico Séneca: “Otium sine litteris mors est et hominis vivi sepultura” (O ócio sem estudo é a morte e o sepultamento do homem vivo). Ou seja, o ócio improdutivo, sem reflexão ou cultivo intelectual, paralisa a vitalidade humana.

Para Pascal, a fuga através do divertimento era o meio mais comum de escapar ao tédio. Outros filósofos, como Schopenhauer e Kant, também destacaram que a raiz do problema está na relação do homem com o tempo e com a sua própria finitude. Ainda assim, o tédio pode ser superado pela criatividade, pela interioridade e, na visão pascaliana, pela relação com o transcendente.

Importa notar que, em situações de fragilidade psíquica, o tédio pode intensificar a angústia e abrir espaço para o desespero, constituindo um fator de risco para o suicídio. Isto não significa que conduza necessariamente a tal desfecho, mas que pode agravar vulnerabilidades já existentes.

Assim, tanto a dor psíquica como o tédio a angústia ou outros males psicológicos devem ser entendidos como problemas temporários, suscetíveis de ressignificação com o apoio adequado. Podem representar risco, quando associados à desesperança, mas também oportunidade de crescimento, quando enfrentados de forma saudável. Reconhecer esta ambivalência é essencial para a prevenção, sobretudo no âmbito de campanhas como o Setembro Amarelo.

Concluo retomando a máxima de Shneidman: na minha perspetiva, e em contraste com a afirmação do citado autor, o suicídio não deve ser entendido como uma solução definitiva, mas antes como o reflexo de um sofrimento que obscurece a esperança e a perceção do tempo. Há sempre outros caminhos possíveis para enfrentar e superar os problemas temporários. A responsabilidade que recai sobre todos nós: sociedade, instituições e profissionais é a de agir, proteger e cuidar de vidas, promovendo espaços de acolhimento e (auto)transformação.

Se chegou até aqui e está a passar por uma situação difícil ou a enfrentar um problema, saiba que não está sozinho. Procurar apoio é uma decisão sábia. Reconhecer que não somos autossuficientes e que, em determinados momentos, necessitamos de suporte externo quando não conseguimos resolver, por meios próprios, os nossos problemas existenciais não é sinal de fraqueza, mas de grandeza. Procure ajuda e ofereça ajuda a quem dela precisar!

 

Niterói, 02/10/2025
Arlindo Nascimento Rocha


Este artigo foi publicado no jornal digital – Mindel Insite – disponível no link: <https://mindelinsite.com/opiniao/entre-a-dor-psiquica-e-a-desesperanca/>. 03/10/2025. 


O suicídio e a experiência do tempo

 


 

Por: Arlindo Nascimento Rocha 

No dia 25 de setembro de 2025, durante uma palestra sobre o “Setembro Amarelo”, campanha dedicada à valorização da vida e à prevenção do suicídio, a magnífica exposição da Psicóloga Thatiana Michelsem proporcionou-me um momento de raro insight. Ao abordar os fatores de risco associados ao suicídio, um pensamento surgiu, articulando dois conceitos que, à primeira vista, podem parecer dissociados: a experiência do suicida e sua relação com o tempo.

Compartilhei brevemente essa intuição ao final da palestra e, posteriormente, com minha esposa, que carrega consigo a experiência profunda do luto pela perda de um irmão. É uma reflexão em estágio inicial, pois, tive apenas uma tarde e uma noite para refletir sobre o assunto! Não sou especialista na área, no entanto, considero esta reflexão urgente e necessária. Por isso, gostaria de desenvolvê-la com cuidado e sensibilidade que o tema exige.

Não tenho a pretensão de esgotar o assunto ou de encontrar unanimidade, pois, de antemão, considero-a algo improvável quando se trata da complexidade da experiência humana. Meu objetivo, antes, é semear uma perspectiva que possa, para algumas pessoas, funcionar como um instrumento de ressignificação, abrindo caminho para a superação, revelando faíscas de esperança onde antes parecia existir apenas escuridão.

A proposta central é entender que o indivíduo que contempla o suicídio pode vivenciar uma radical distorção em sua relação com o tempo. Nós, seres humanos, somos temporais por natureza; nossa existência é uma caminhada finita que se desenrola no tempo.

Para a maioria, o tempo contém uma dialética: é o campo tanto da dor, do sofrimento e do desgaste quanto da cura, do aprendizado, da resiliência e da superação. Conseguimos, ainda que com dificuldade, e com muito diálogo, visualizar um futuro onde a dor atual possa ser transformada ou sublimada.

Filosoficamente, este diálogo ocorre com ideias de filósofos como Filósofo alemão, Martin Heidegger, para quem o ser humano é um "ser-no-tempo" com uma temporalidade caracterizada pela abertura ao futuro, à historicidade e à finitude. Em contextos de sofrimento profundo, de depressão, de luto e das crises existenciais, essa temporalidade abre espaço para a angustiante percepção da finitude e da mortalidade.

Como seres de e no tempo, a sensação de “paralisação” ou de “metamorfose” pode ser dois fatores paradoxais que envolvem a experiência do suicida com o tempo. A paralização pode aumentar o sentido do vazio enquanto que a metamorfose, ou seja, a autotransformação, pode levar, paradoxalmente a uma abertura para o entendimento.     

No entanto, para a pessoa imersa em um sofrimento psíquico intenso, esse diálogo colapsa, onde o futuro deixa de ser percebido como uma possibilidade de mudança. A perspectiva temporal pode se contrair drasticamente, fixando-se em um eterno presente da agonia, ou seja, da agonia do “eterno retorno” nietzschiano, da agonia decadente que vê no sofrimento, na dor, na tristeza, na desesperança, algo a ser negado, superado ou redimido.

Pessoas com tendências suicidas, vivem um estado, conhecido na psicologia como constrição cognitiva que estreita e reduz o campo da percepção temporal. A mente, toldada pela dor e pelo sofrimento perde a capacidade de acessar lembranças reconfortantes ou de projetar cenários alternativos. O sofrimento não é mais um episódio dentro de uma linha do tempo; ele se torna a própria linha do tempo.

Nesse contexto, a ideia de que “o tempo cura” soa como uma ironia vazia. Quando o futuro é percebido apenas como a perpetuação de uma dor insuportável, o ato suicida pode ser erroneamente interpretado como a única saída para interromper um fluxo temporal que se tornou fonte de tortura. Paradoxalmente, é como se o indivíduo, na tentativa desesperada de aniquilar a dor, sentisse a necessidade de primeiro aniquilar o tempo, aquele tempo futuro que, em sua percepção, só promete mais sofrimento.

É crucial enfatizar que esta não é uma falha de caráter ou fraqueza, mas sim uma consequência compreensível de condições de saúde mental que podem incluir depressão grave, transtorno de estresse pós-traumático, entre outras. A sensação de desesperança é um dos mais fortes preditores de risco suicida.

Portanto, a intervenção mais vital é justamente reintroduzir a possibilidade do tempo. A escuta empática, seja de um amigo, um familiar, ou um profissional de saúde mental (psicólogo ou psiquiatra), pode atuar como uma ponte para fora desse presente constrito. Ao validar a dor sem julgamentos e oferecer suporte, esse acolhimento ajuda a reconstruir, mesmo que minimamente, a ponte para um futuro onde outras experiências, inclusive as de alívio e de ressignificação, são possíveis.

Assim, talvez possamos reformular o ditado popular "enquanto há vida, há esperança" para "enquanto houver a possibilidade de um amanhã, há espaço para a intervenção e a transformação". O tempo, aliado a suportes adequados, pode de fato ser um grande agente de cura, mas ele não age sozinho. Requer a coragem de quem sofre em buscar ajuda e a responsabilidade coletiva de oferecer uma rede de apoio segura e livre de estigmas.

Se você está lutando contra pensamentos suicidas, ou se é um sobrevivente desta experiência, saiba que a sua dor é real e profundamente respeitada. A sensação de que o futuro está fechado é uma ilusão criada pelo sofrimento, não um fato.

Permitir-se conectar com o outro, buscar ajuda especializada, é um ato de coragem que pode reabrir as portas do tempo. Pequenos lapsos de alívio, momentos de conexão genuína e a interrupção do ciclo de dor são possíveis. A sua história ainda não terminou de ser escrita, e há apoio disponível para ajudá-lo a encontrar, um dia de cada vez, novos significados para continuar a narrá-la.

 

Niterói - 26/09/2025.

 

O Artigo foi publicado no jornal digital - Mindel Insite e está disponível no link: <https://mindelinsite.com/opiniao/o-suicidio-e-a-experiencia-do-tempo/#:~:text=Pessoas%20com%20tend%C3%AAncias%20suicidas%2C%20vivem,ou%20de%20projetar%20cen%C3%A1rios%20alternativos>. 27/09/2025